sábado, 9 de maio de 2015

Comentário ao Art. 54º CPA



O Código de Procedimento Administrativo, estabelece no seu Art. 54º que "A língua do procedimento é a língua portuguesa.".
Na perspectiva do signatário, fá-lo de forma susceptível de algum pensamento critico, por uma ordem de razões que aqui se enumeram.

Desde logo, porque não se compreende totalmente o objectivo do legislador ao colocar esta norma no código, ora colocar a referência à língua do procedimento parece ser um acto redundante tendo em conta que a língua determinada é o Português e o CPA se aplica em Portugal. Estranho seria se o legislador determinasse outra língua que não essa em concreto. Por outro lado pergunta-se se seria de facto necessário colocar esta norma no código tendo em conta essa redundância que citamos supra, ou se o legislador viu uma necessidade de plasmar na lei uma obrigação desta natureza.

Se na primeira pergunta a resposta parece ser óbvia, tendo em conta que as normas se aplicam em Portugal é natural que a língua do procedimento por regra seja essa, a segunda questão deixa mais reservas.

Reservas que se prendem com a eventual discriminação de cidadãos que não tenham como língua o Português. E o CPA aplica-se a todos os cidadãos portugueses ou estrangeiros, no âmbito das relações que se estabeleçam entre estes sujeitos e a Administração Pública. Mesmo que olhemos apenas o espectro europeu, temos a UE constituída por 28 Estados-Membro havendo 24 línguas oficiais.

Assim, podemos desde logo ter uma percepção de estarmos perante uma descriminação o legislador ter restringido ao uso de uma língua, dadas as barreiras criadas ao acesso dos cidadãos à componente administrativa. Um cidadão europeu que não fale português pode ver-se privado de realizar determinado acto ou de obter da administração determinado tipo de informação, simplesmente por não poder cumprir com o disposto no Art. 54º CPA.

Mas então, temos de trazer à colação o direito português e europeu, para resolver este problema criado pelo legislador. Assim, logo no Art. 2º do Tratado da União Europeia "A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.", temos uma alusão à proibição da discriminação.

Esta proibição da discriminação deve ser densificada, no entanto. Para tanto, ainda no plano do direito europeu, os princípios da igualdade e não discriminação que encontramos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. , nomeadamente o Art. 20º, Igualdade perante a lei, "Todas as pessoas são iguais perante a lei." e o nº 1 do Art. 21º Não discriminação "1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.". De igual forma, podemos ainda ter em conta o teor do Art. 22º da Carta, Diversidade cultural, religiosa e linguística "A União respeita a diversidade cultural, religiosa e linguística".

Além das disposições supra citadas, o direito europeu ainda oferece mais uma "kryptonite jurídica" que parece ter capacidade para "destruir" o que pudesse ainda restar de força e justificação ao Art. 54º do CPA. Nomeadamente o Art. 41º da Carta, Direito a uma boa administração "1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Este direito compreende, nomeadamente: a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente; b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial; c) A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros. 4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua." Chama-se a atenção do leitor, particularmente aos números 1 e 4 do artigo.

Se no domínio do direito europeu já começamos a perceber que a norma do Art. 54º provavelmente não deveria estar no CPA, ou estando provavelmente padece de alguma patologia jurídica, vejamos o que se pode tirar do direito português nesta matéria.

E nesta matéria, o direito português parece ser bastante claro, quer ao nível da intenção do legislador constitucional quer ao nível do legislador do restante direito.

A Constituição da República Portuguesa é bastante clara em matéria de direitos e deveres fundamentais, e o Art. 13º Princípio da igualdade, "1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Paralelamente não deixa de ser interessante o teor do Art. 268 CRP Direitos e garantias dos administrados, nomeadamente o nº 4. "É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.".

Como "um mal nunca vem só", o direito europeu e a Constituição da Republica Portuguesa não são as únicas fontes de direito onde podemos ir beber normas que indiquem a estranha inclusão do Art. 54º no CPA.

A traição é algo terrível, e o próprio CPA contem normas no sentido da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, que parecem colidir com uma norma que possa ser considerada discriminatória, como o Art. 54º CPA. Assim, o Art. 6º do CPA Principio da igualdade "Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.", de facto ler esta norma e posteriormente o Art 54º pode resultar em alguma esquizofrenia jurídica, como pode a Administração estar obrigada a reger-se por princípios não descriminatórios e depois parecer poder descriminar em função da obrigação de adopção da língua portuguesa exclusivamente para o procedimento administrativo?

Uma coisa é Portugal ter língua oficial, como qualquer Estado-Membro, outra diferente é ter possibilidade de determinar o exclusivo uso dessa língua nos termos do Art. 54º sem estar a fazer letra morta do direito europeu que se aplica directamente no nosso ordenamento jurídico, e bem como fazer letra morta das normas da CRP no plano dos Direitos, Liberdades e Garantias. O próprio CPA prevê a não discriminação em função da língua.

O Art. 54º do CPA não devia ter sido introduzido no novo CPA, na perspectiva do signatário.
,
Jaime Borges, 16921, ST-1.

Sem comentários:

Enviar um comentário